Lei do Superendividamento ainda depende de regulamentação para delimitar renda disponível para pagar empréstimos
O endividamento em alta somado à crise inflacionária e à perda de renda na pandemia aprofundaram o risco de aumento no número de famílias brasileiras sem condições de honrar empréstimos ou sujeitas a sacrificar despesas básicas para arcar com eles. O prognóstico de superendividamento e potencial inadimplência é preocupante por afetar a disponibilidade de crédito.
A necessidade de que o pagamento do compromisso não comprometa a subsistência dos consumidores foi um dos objetivos da Lei do superendividamento (Lei 14.181/2021), sancionada em julho e que alterou o Código de Defesa do Consumidor. Porém, definir qual exatamente seria o limiar básico a ser assegurado para a vida do consumidor endividado ainda depende de regulamentação própria, que deve ser feita via decreto presidencial.
A lei fala em preservar o “mínimo existencial” do consumidor na repactuação de dívidas e na concessão de crédito. Essa garantia seria uma das formas de prevenir o endividamento excessivo, que a legislação tenta combater. Inclusive, o termo está presenta na descrição do que seria o superendividamento, que seria a impossibilidade manifesta de o consumidor pagar todas as dívidas de consumo “sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”.
Nos planos de pagamento e conciliação, esse elemento deve estar presente na análise de juízes e integrantes dos órgãos públicos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, segundo a lei. Com isso, a tentativa é conciliar o princípio constitucional da dignidade humana com o estímulo aos devedores para saldar as dívidas.
No governo, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, tem sido a responsável por coordenar essa regulamentação. Ainda não há previsão sobre quando o decreto será publicado. “Pesquisas estão sendo desenvolvidas para dar subsídios na definição logo: nos preocupam regulamentações que possam surgir em apenas alguns estados da federação, gerando mais insegurança jurídica”, afirmou a secretária da pasta, Juliana Domingues, em audiência pública sobre a regulamentação do tema, em outubro.
A maior questão a lidar é como a regulamentação será capaz de determinar o que seria o “mínimo existencial” – seria o total de renda necessário para pagar contas básicas todos os meses, uma porcentagem dos ganhos de uma família ou um valor fixado?
“Sem o mínimo existencial, não há sustentabilidade para o sistema, porque as pessoas não buscarão renegociar. Mas é importante diferenciá-lo do patamar estabelecido para linhas da pobreza e acesso a programas de assistência social, sob o risco de reduzir o superendividado à miséria”, defendeu a professora Claudia Lima Marques, diretora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, uma das responsáveis pela redação da lei.
A ideia de ter um patamar móvel e adaptável às particularidades de cada consumidor e também às desigualdades sociais é defendida pelas entidades que atuam ao lado dos consumidores. “O mínimo existencial não pode ser confundido com vital. A definição não pode ser taxativa, com base em proporção da renda ou qualquer outro parâmetro absoluto, mas ser julgado caso a caso”, afirmou Eduardo Paladino, coordenador do Centro de Apoio Operacional do Consumidor do Ministério Público de Santa Catarina.
Alguns dos empecilhos a um valor único seriam as desigualdades regionais, a diversidade das fontes de renda informais e a composição das dívidas, que podem ser financeiros ou no varejo. Outra dificuldade seria para compor um montante capaz de se moldar às oscilações econômicas e de preços, como aumentos nos preços de energia, alimentos e combustível, que afetam os custos de vida da população.
“O mínimo existencial existe para que não se precise chegar ao patamar das políticas assistenciais. E está relacionado também à concessão responsável do crédito, racionalizando como ela é feita”, disse Luiz Fernando Baby Miranda, coordenador do Núcleo Especializado de Defesa do Consumidor da Defensoria Pública de São Paulo.
A proposta do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) é que sejam afixados fatores e características do consumidor como estoque de dívida, composição da renda familiar, tipo de vínculo de emprego ou aposentadoria, dependentes familiares e saúde. “Pesar esses elementos é o que deveria definir o quanto de renda pode ser alocada. A população de menor renda já não tem o mínimo para subsistir, por isso é difícil definir teto”, explica a coordenadora do programa de serviços financeiros da entidade, Ione Amorim.
Uma proposta muito aberta, com a definição a cargo de cada magistrado, poderia gerar indefinições e insegurança jurídica para a concessão do crédito. Por isso, para as instituições financeiras, uma demanda é que a regulamentação seja capaz de estabelecer critérios específicos que possam seguidos também por elas.
“É importante que o conceito seja claro, objetivo e unificado, além de ter equilíbrio para mitigar inadimplência. Mas sabendo que quanto maior o valor do mínimo existencial, menor é a oferta de crédito a todos os consumidores, com risco de mais endividamento”, disse na audiência pública Amaury Martins de Oliva, diretor de autorregulação da Federação Brasileira de Bancos (Febraban).
A associação simulou diferentes cenários e constatou que, a depender do parâmetro de mínimo existencial, a redução na oferta de crédito no Brasil poderia variar de R$ 1 trilhão a R$ 250 bilhões. Também que a regulamentação deve estabelecer mecanismos para comprovação de renda e mapeamento de dívidas bancárias e não bancárias.
Para Oliva, ainda há espaço para o crescimento do crédito no país, preservando o comprometimento da renda em níveis saudáveis. Além disso, a questão é relevante ao tentar resgatar o poder econômico do consumidor. “No fim, a regulamentação impacta todos os consumidores, porque impacta a oferta de crédito. É uma oportunidade de conciliação e de distinguir endividamento e comprometimento de renda”, disse.
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